Deixado Para Morrer

Author: Beck Weathers e Stephen G. Michaud
Editora: Intrínseca
Ano: 2015
Edição: 1
Páginas: 256

Tradução: Catharina Pinheiro
Original: Left For Dead: My Journey Home from Everest

Dedicatória:

Para Peach, Beck II e Meg, cuja visão me deu a força necessária para me levantar e deixar a morte para trás; Madan K. C., que nos mostrou o poder de um coração destemido; David Breashears, Ed Viesturs, Robert Schauer, Pete Athans e Todd Burleson, por terem me mantido na irmandade da corda; e em memória de Andy Harris, Doug Hansen, Rob Hall, Yasuko Namba, Scott Fischer, Ngawang Topche Sherpa, Chen Yu-Nan e Bruce Herrod — minha mais sincera solidariedade às suas famílias.

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A história de “Deixado Para Morrer” vai além de mais uma história sobre a tragédia ocorrida em Maio de 1996 no Everest contada do ponto de vista de Beck Weathers, protagonista narrador.  É narrada em primeira pessoa, pelo próprio Beck contando a versão de seu ponto de vista, mas intercalado com os depoimentos de familiares e amigos (ah, Jon Krakauer aparece aqui também). O leitor tem a sensação de que tanto Beck quanto as pessoas estão falando diante da câmera como se contassem a história ali naquele momento.

Beck é um cara normal, casado, com dois filhos e que ultimamente não tinha nenhum interesse que não fosse o alpinismo. A obsessão era incontrolável e ele passou a respirar este assunto. Ficou tão obcecado que ele treinava de segunda a sábado, até seu corpo ficar do jeito que ele entendia ser o melhor condicionamento para enfrentar o Everest, que sem dúvida alguma é uma das montanhas mais importantes do mundo. Os Sete Cumes são como as seis Majors para os maratonistas. Se você entende de corrida, você vai saber do que estou falando.

Basicamente a história se divide em três grandes temas: as viagens de Beck para as escaladas, sua relação com a esposa Peach e seus filhos Beck II e Meg e obviamente todo o processo que envolve a preparação e viagem para chegar dos Estados Unidos ao Himalaia para escalar o Everest.

Por estarmos dentro da cabeça de Beck, conseguimos entender o vazio que ele causa em sua família com a obsessão pelo alpinismo, a preparação para todas as suas viagens e ainda o livre discurso que ele delegava a si mesmo a cada vez que tinha compromissos com a montanha.

A obsessão por um esporte tão radical, o perigo iminente da morte vivenciada de perto junto com o descaso para com a própria família, são alguns sintomas graves de que você precisa de algum tipo de ajuda. Beck e sua família não entenderam isso a tempo de evitar um acidente que poderia ter tido um final trágico.

Assim como Beck, também uso o esporte para manter minha mente ocupada dos problemas, como uma válvula de escape que garantisse a exaustão em troca de não pensar em nada. Além da fuga corporal, a rota da literatura ganha proporções maiores se nos realizarmos no êxtase do cansaço. É preciso estar muito atento para não deixar que o limite entre o hobby e a fuga tornem-se o perímetro da sua psicose.

Parece que em 2015 este livro foi base para o filme homônimo, que claro, ainda não assisti. Em todo o caso, este é um bom livro, vale bastante a leitura.

Destaques:

[1] Nunca havia levado a sério quando diziam que era preciso amaciar botas novas antes de usá-las para escalar: ou elas cabiam bem desde o início ou não cabiam. Minhas botas velhas estavam com buracos que a luz atravessava. Eu não achava que suportariam outra expedição. Infelizmente, o atrito entre as botas novas e a minha pele causou feridas. Os ferimentos não se curam em altitudes elevadas, então eu sabia que só me recuperaria quando deixasse a montanha. Uma estratégia era manter os cadarços frouxos. Mas não importava o que eu fizesse: cada passo era uma agonia. No final das contas, não tive outra escolha a não ser enrolar minhas canelas com bandagens, engolir o choro e aprender a conviver com o problema. Não fazia sentido reclamar de uma coisa que eu não podia mudar.

[2] Mas é preciso ser paciente. Ao escalar muito rápido, corre-se um risco maior de ter um edema pulmonar de grande altitude, também conhecido como Hape (high altitude pulmonary edema), condição em que os pulmões ficam cheios de água e, a não ser que se desça da montanha muito rápido, há risco de morte. Mais mortal ainda é o edema cerebral de grande altitude, ou Hace (high altitude cerebral edema), que provoca o inchamento do cérebro. O Hace também pode induzir um coma fatal se a pessoa não for rapidamente transportada. Não tem como saber de antemão se alguém é suscetível a essas condições médicas. Algumas pessoas desenvolvem sintomas em altitudes de apenas três mil metros. Além disso, alpinistas veteranos que nunca tiveram nenhum problema podem desenvolver Hape ou Hace de repente. Há ainda uma ameaça muito mais comum, embora também imprevisível: a hipóxia, causada pela redução do suprimento de oxigênio transportado ao cérebro. A hipóxia leve causa euforia e deixa a vítima com um comportamento meio abobalhado. Já a severa tira toda a capacidade de julgamento e bom senso, uma complicação ameaçadora em grandes altitudes. Os alpinistas chamam essa condição de Hame: Homem Abobalhado em Montanhas Elevadas.

[3] Sou míope e passei anos escalando montanhas com óculos cobertos de gelo, lentes de contato desconfortáveis e todos os tipos de mecanismos que deveriam manter meu campo de visão claro. Nada funcionava. Assim, um ano e meio antes de ir para o monte Everest, me submeti a uma cirurgia de correção da miopia para escalar as montanhas com mais segurança. A intervenção cirúrgica adotada foi a ceratotomia radial, em que são feitas incisões minúsculas na córnea para alterar a distância focal e (ao menos é o que se espera) consertar a visão. Entretanto, o que eu não sabia — assim como quase nenhum oftalmologista no mundo — é que, em grandes altitudes, uma córnea que passou por esse tipo de alteração sofre ao mesmo tempo um achatamento e um engrossamento, reduzindo a distância focal e tornando o indivíduo temporariamente cego. Foi isso que aconteceu comigo cerca de 460 metros acima do Acampamento Avançado na madrugada de 10 de maio de 1996. A princípio, não fiquei muito preocupado. Eu já tivera pequenos problemas de alteração da visão antes, mais recentemente no Acampamento Base e quando havíamos passado pela cascata de gelo. Estava acostumado a ter dificuldade para enxergar à noite e no início das manhãs até o sol estar forte o bastante para que eu usasse óculos escuros.

[4] Depois Peach escreveria para Madan agradecendo pelo ato extraordinário de coragem ao me resgatar na montanha. Mais tarde, Madan me disse que, das centenas de vezes que ele resgatara pessoas no Himalaia, aquela fora a primeira em que recebera tantos agradecimentos. Acho que não damos o devido valor aos nossos heróis.

[5] Quanto a mim, eu não tinha nenhum padrão de comparação para o meu casamento. Eu não era infeliz, e quando Beck está bem ele é gentil, generoso e nada exigente. Ele não é nenhum autocrata. Então, naquele momento, decidi que ficaria satisfeita por ter me casado com um homem bom e trabalhador — e simplesmente esperei que ele fosse confiável. A verdade é que, se você quiser alguém intuitivo e sensível, é melhor se casar com uma mulher.

[6] A dieta de Kagge consistiria em bacon cru, o alimento que oferecia o maior ganho calórico. O bacon, pelo menos em tese, é o melhor combustível para alguém que está se movendo rápido num deserto congelado e arrastando consigo um trenó de cerca de 160 quilos. Disseram-me que o truque era comer pedacinhos de bacon a curtos intervalos. Mesmo que a pessoa quisesse, não poderia se sentar para uma boa refeição. Kagge levava o bacon em uma pochete, mastigando-o constantemente à medida que avançava. Os esquimós comem gordura de baleia, o que mantém seu organismo funcionando, o mesmo efeito que o bacon exercia em Kagge. Se você acha que perto da virada do milênio era de se esperar que alguém pudesse ter inventado algo mais palatável ou mais avançado do que porco cru para Kagge, fique sabendo que o bacon não parece tão ruim quanto hoosh, uma mistura terrível que por décadas foi a alimentação padrão dos exploradores da Antártida. De acordo com uma receita fornecida por Malcolm Browne no The New York Times, o hoosh era um cozido de carne de foca ou de pinguim misturada com banha de porco, farinha, cacau, açúcar, sal e água. Comparado a isso, o estrume congelado com papelão que comi na maioria das expedições que fiz em montanhas era um manjar dos deuses.

[7] Acredito que foi na manhã seguinte que saí da minha barraca e fiquei maravilhado ao ver três sóis idênticos no céu acima das nossas cabeças. Até então, eu não sabia nada sobre o parélio, fenômeno em que uma camada de gelo presente na atmosfera reflete uma imagem do sol em vários pontos no céu. Os sóis adicionais emprestavam a uma paisagem já surreal uma aparência ainda mais fantástica. Não pude deixar de me lembrar das cenas de abertura de Guerra nas estrelas e dos múltiplos sóis no céu do planeta de Luke Skywalker.

[8] Se tivesse sido só o alpinismo, incluindo o Everest, talvez tudo fosse diferente. Mas, se ele achasse que eu detestaria algo, ele fazia. Primeiro eram as armas, e depois a moto. Ao que parece, é uma característica de indivíduos depressivos provocar justamente as pessoas mais próximas. E ele fazia questão de esfregar isso na minha cara.

[9] Não me lembro da resposta exata que dei a Terry, mas em suma foi: “Fico muito feliz com o que você me disse, mas preciso fazer isso. Estou preparado.” Fiquei comovido com o que Terry falou. A maioria das pessoas não tem coragem de dar um passo à frente e dizer: “Abandone seu sonho. Ninguém vai culpá-lo.” Em parte, decidi ir porque queria provar algo a mim mesmo. Mas, àquela altura, eu podia igualmente decidir pular de um precipício. É possível reconsiderar a ideia no meio do caminho, mas não há como voltar atrás.

[10] Já me disseram que pessoas que estão à beira da morte podem resistir por pura determinação se ainda houver alguma coisa importante para fazerem. Acredito que isso seja verdade. Howard tinha resistido até então, e agora estava pronto para se entregar. Pudemos vê-lo ceder à exaustão. Ele fechou os olhos e ficou inconsciente. Sua respiração foi ficando cada vez mais difícil e irregular. Então, ele não estava mais lá.

[11] Howie simplesmente entendia melhor do que a maioria de nós a importância das pequenas realizações, tradições e rituais em contraposição às grandes entradas e saídas — que é a jornada, e não o destino, que importa nas nossas vidas. Parece que vamos a mais funerais do que casamentos.

 

Sobre carolinayji

Desde que me conheço por gente, há algumas décadas, sou eu.
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