Li meu primeiro livro de Mo Yan ano passado. Você pode conferir
aqui.
Um livro que conta um pouco, ainda que de forma ficcional a polêmica história do planejamento familiar da República Popular da China, ou em termos mais populares, a política do filho único.
A história se passa na China e é narrada por Corre Corre, por meio de cartas escritas por ele (sob o pseudônimo de Girino) a um professor japonês no período de 2002 a 2008. Este professor é um personagem fundamental para o narrador: ele o incentiva a escrever um livro contando a biografia de sua tia, Wan Coração, que é uma combatente a serviço do Governo Comunista nos entraves do planejamento familiar chinês. Ela é a responsável pelos partos e abortos das mulheres da comunidade e das proximidades.
Na província de Corre Corre, há uma tradição muito peculiar: as pessoas têm nomes de órgãos e partes do corpo. Corre Corre é o apelido de Wan Perna (Wan é seu sobrenome). Há nomes muito engraçados como Chen Sobrancelha, Chen Nariz, Wang Pé, Yuan Bochecha, Chen Testa entre outros. Fico pensando no meu nome e cheguei à conclusão que meus pais certamente me dariam o nome de Ji Cabeça.
Em meados da década de 60, Corre Corre conta um episódio muito exótico, creio que até mesmo para os chineses: na escola, devido o forte cenário de fome na qual o país se encontrava durante o período controlado por Mao, ele e as crianças da província comem carvão que encontraram em uma mina. Ele descreve a cena como se as crianças estivessem comendo uma iguaria; eles comem com prazer se sujando de preto e branqueando os dentes – este episódio é relembrado por ele em algumas passagens do livro posteriormente.
As famílias dos camponeses podiam ter mais de um filho se a primeira criança fosse menina. Mas a regra era válida apenas depois que ela completasse oito anos. Em se tratando de uma segunda menina, o casal não poderia ter mais um terceiro filho. Era o papel da tia de fazer o aborto das crianças ilegais, bem como realizar a operação de vasectomia nos homens, para garantir o cumprimento da lei. Ao longo da minha vida, conheci muitas pessoas da minha idade que não tinham irmãos – que tristeza deve ser você não crescer com alguém para dividir as suas memórias da infância. O livro possui passagens decapitadoras sobre o sofrimento das mulheres chinesas (que algumas autoras como Adeline Yen Mah e Xinran já haviam contado em seus livros, respectivamente “Cinderela Chinesa” e “As Boas Mulheres da China”- livros que li há alguns anos atrás).
Este livro me trouxe muitas lembranças e também reflexões. Da infância com as inúmeras superstições chinesas, as histórias sobre as pálpebras dos chineses e aqui me encaixo também, já que não tenho essa pálpebra dupla, que foi me passado pelo meu avô e pelo meu pai e que por ironia do destino, deve acabar em mim, já que infeliz e provavelmente não terei filhos e minha irmã tem pálpebra dupla.
Não vou conseguir explicar por que este foi o melhor livro que li em 2017 (que está acabando e sei que não conseguirei ler outro tão bom quanto). Mo Yan é frequentemente comparado à Gabriel Garcia Márquez por causa do realismo fantástico que dedica em seus livros e eu sei que, apesar de tudo o que foi descrito no livro, não será nada comparado ao sofrimento das milhares de famílias chinesas.
…
[1] “O feng shui da sede da nossa comuna também não é bom”, prosseguiu Yuan. “Desde sempre a porta principal de um yamen fica voltada para o sul, mas na nossa comuna a porta principal dá para o norte, bem na direção do abatedouro, o dia inteiro tem facas se banhando em sangue, carnes sendo retalhadas, a atmosfera de carnificina é muito pesada. Quando fui dizer isso lá na sede, falaram que eu estou envolvido com superstições feudais, por pouco não me prenderam. E viram o que aconteceu? O velho secretário Qin Shan está com um lado do corpo paralisado, o irmão mais novo dele é um biruta de marca maior. Qiu, o secretário novo, foi com mais de uma dúzia de pessoas fazer uma inspeção no Sul, sofreram um acidente de trânsito e, entre mortos e feridos, praticamente não sobrou ninguém para contar a história. Feng shui é coisa séria, não adianta você bancar o durão, por mais durão que seja, não será mais que o imperador, não é? E até o imperador devia estar atento ao feng shui…” “Vamos sentar!”, eu disse enquanto dava um tapinha em Yuan. “Mestre, o feng shui é importante, mas comer e beber também são muito importantes.” “Se não mudarem a posição da porta principal da sede da comuna, alguém ainda vai enlouquecer ali, ainda vai acontecer algo muito ruim”, disse Yuan. “Quem não acredita em mim que espere para ver!”
[2] Só estou desabafando com você, que é uma pessoa da família. Sou leal e devotada ao Partido Comunista, nem tudo aquilo que passei na Revolução Cultural conseguiu me abalar, quanto menos agora! O controle de natalidade não pode deixar de ser feito. Se liberar os nascimentos, em um ano serão trinta milhões, em dez anos, trezentos milhões, em mais cinquenta anos, a Terra vai ser esmagada pelos chineses, por isso é preciso baixar a taxa de natalidade a todo custo, é uma contribuição dos chineses para toda a humanidade!”
[3] “Yanyan se parece com você, tem a pálpebra sem dobra, eu tenho a pálpebra com dobrinha.” “Pois é, ela teria melhor sorte se parecesse mais com você, mais bonita que eu.” “Dizem que, na maioria das vezes, a filha se parece com o pai, e o filho se parece com a mãe.”
[4] Eu dava palmadinhas nas costas da Leoazinha e espiava minha tia de canto de olho. Ela ora baixava a cabeça e fitava o chão, ora sorria. Em que estaria pensando? De repente lembrei que ela contava quarenta e sete anos, sua juventude havia terminado fazia tempo, agora andava pela meia-idade, mas seu rosto, marcado pela vida, já mostrava a desolação da velhice. Me lembrei do que dizia minha mãe: “A mulher nasce para quê? A mulher, no fim das contas, nasce é para ter filho. O renome de uma mulher vem de seus filhos, a dignidade de uma mulher vem de seus filhos, a felicidade e o orgulho de uma mulher também vêm de seus filhos. Mulher sem filho é uma angústia, mulher sem filho não pode se considerar completa. Além do mais, mulher sem filho fica com o coração duro, envelhece mais rápido”. Quando dizia essas coisas, minha mãe se referia a minha tia, mas nunca falou nada na frente dela. Será que o envelhecimento da minha tia tem a ver com o fato de ela não ter filho? Ela já está com quarenta e sete anos, caso se apressasse para casar, ainda teria condições de gerar um filho? E, afinal de contas, onde está o homem que poderia ser o marido da minha tia?
[5] Lembrei a minha esposa que ela não podia agir como avó-loba ao ver bebês encantadores. “As crianças de hoje são tesouros de seus pais”, eu disse, “você ficou olhando para o bebê e nem percebeu a cara feia do pai.” Leoazinha se sentiu injustiçada, começou a xingar os ricos que tinham filhos sem querer saber das cotas de natalidade, e os homens e mulheres casados com estrangeiros que produziam filhos numa corrida contra o tempo. Em seguida, teve pena de si mesma, arrependeu-se por trabalhar com minha tia na rígida e até mesmo cruel execução da política de planejamento familiar, fez tantos abortos, violou os princípios celestiais, e agora o céu a punia impedindo-a de ter um filho. Por fim, desejou que eu me casasse com uma mulher estrangeira e tivesse um monte de filhos mestiços. “Corre Corre”, disse ela, “não vou ficar com ciúmes, nem um pingo de ciúmes, se você se casar com uma estrangeira. Tenham filhos à vontade, quantos conseguirem. Depois que nascerem me deem para eu cuidar.” Nesse momento seus olhos se encheram de lágrimas, sua respiração ficou mais rápida, seus peitos redondos começaram a arfar, mal se contendo de tanto amor maternal. Se lhe desse um bebê, eu não duvido nada que jorraria leite.
[6] Se tem uma coisa que aprendi com todos os partos que eu fiz”, minha tia continuou, “é o seguinte: a índole de uma pessoa depende menos da educação e mais da genética. Podem criticar minha teoria de classes por consanguinidade, mas foi o que a prática me ensinou. O descendente de uma pessoa má como Pepino pode até crescer num templo, mas vai ser um monge tarado. Por mais que eu sinta pena de Wang Xiaomei, não vou tentar convencê-la, não posso deixar Pepino se safar tão fácil, mesmo que acrescente a este mundo um monge tarado. No fim, ainda acabei fazendo o aborto de Wang Xiaomei.
[7] “Na verdade, não há por que ter medo de anfíbios, eles têm o mesmo ancestral do homem”, ela disse. “O girino tem a mesma forma do espermatozoide e o óvulo humano também não difere muito de um ovo de rã. Além disso, já viu um feto com menos de três meses? Tem uma cauda comprida, igualzinho aos anfíbios na fase da metamorfose.” Olhei para ela ainda mais espantado. Ela parecia recitar de cor: “Por que a palavra ‘wa’ pode significar tanto ‘rã’ como ‘bebê’? Por que o choro de um bebê que saiu do ventre da mãe é parecido com o coaxo de uma rã? Por que os bonecos de barro da nossa terra muitas vezes têm uma rã no colo? E por que a deusa criadora da humanidade se chama Nü Wa? Tudo isso indica que o ancestral dos seres humanos foi uma grande rã, o homem evoluiu da rã. É totalmente errada a teoria de que o homem veio do macaco…”.
[8] “Tio”, ele continuou, “não acho certo pessoas ilustres como o senhor não terem filho homem, isso é um crime, sabe? Como disse Confúcio: ‘Há três condutas não filiais, a pior delas é não gerar descendentes…’.”
[9] “Enquanto nada acontece, seja medroso como um rato; mas quando algo acontecer, fique valente como um tigre.” “Se não é desgraça, é felicidade; mas se é desgraça, não há como fugir.” Foi o que meu pai me ensinou. Gente velha adora provérbios.