Do Que Eu Falo Quando Falo De Corrida

Autor: Haruki Murakami (村上 春樹)
Editora: Alfaguara Brasil
Ano: 2010
Edição: 1

Páginas: 152
Original: 走ることについて語るときに僕の語ること

do que eu falo quando falo de corrida

Retomei a leitura de Murakami. Meu debut foi com “Minha Querida Sputnik” em meados dos anos 2000 quando eu ainda estava na graduação. Por um fio, o entusiasmo com a leitura quase me fez largar a Engenharia para me dedicar à literatura como a protagonista Sumire.

Reconhecido mundialmente por sua forma singular em retratar o cenário pop japonês, Murakami neste livro escapa do que sabe fazer de melhor e constrói uma narrativa biográfica simples e delicada sobre o paralelo da sua própria vida como escritor e maratonista. E ao contrário do que você pode estar começando a imaginar, não há nada de autoajuda e tampouco há um manual de melhores práticas para ser um maratonista neste livro. É mais do que isso.

Os títulos de cada capítulo delimitam a linha do tempo da narrativa: entre o verão de 2005 e o outono de 2006. No entanto a história tem início em 1982 quando conhecemos a fase pré-escritor de Murakami. Ele era dono de bar em Tóquio, com uma vida notívaga e hábitos pouco saudáveis. Assistindo televisão ele tem um insight de escrever um romance e foi aí que tudo começou. Com o prêmio literário que conquistou por conta de seu despretensioso romance de estreia, decidiu abandonar o bar e viver uma vida mais reclusa e regrada como escritor. A partir daí corrida e literatura nunca mais se separaram.

Ficamos sabendo que depois da corrida, Murakami decide se aventurar em percorrer maratonas (inclusive as famosas de Nova Iorque nos Estados Unidos e Maratona na Grécia) e depois, pasmem, triatlo. Um capítulo em específico me chamou a atenção, onde fala da professora de natação. Lembrei imediatamente da minha professora de natação, Laura. Assim como eu, a esposa do Murakami depois de adulta resolveu aprender a nadar. Não é uma tarefa fácil. Nadar exige muita coragem no início: você sabe que vai engolir água pela boca e pelo nariz mas mesmo assim, sabe que precisa entrar na água. Sempre agradeço mentalmente a minha professora de natação que teve muita paciência comigo.

Haruki consegue a proeza de tirar sempre lições acerca de seus fracassos (seu desempenho não é perfeito em algumas corridas). E talvez isso em si já seja um grande aprendizado para nós, leitores dele. A sinceridade com a qual ele escreve é também um grande atrativo. A grande “sacada” de correlacionar a literatura, ou melhor, a prática de escrever com a disciplina japonesa de correr é inusitada, mas ao mesmo tempo, faz todo o sentido do mundo.

Murakami tem 34 anos a mais que eu. E mesmo tendo mais de 60 anos, ele corria quase 300 km por mês enquanto eu nenhum. Creio ainda haver esperança já que ele começou aos 34 e neste ano eu farei 33. Mas não sei se faria da corrida meu esporte de rotina. Eu já tenho o jiu jitsu e espero não mudar. Também vejo esperança em começar a escrever um romance, mas sem precisar abandonar meu emprego.

Este livro não é apenas sobre o processo de criação literária e as maratonas e triatlos. É sobretudo sobre saber quem é o nosso verdadeiro eu interior e a eterna perseverança na busca de encontrarmos o que nos faz felizes. Todo mundo deveria ler “Do que eu falo quando falo de corrida” um dia, mesmo que não queira correr uma maratona ou escrever um romance.

Trechos:

[1] Corridas de longa distância, porém, combinam com minha personalidade, e de todos os hábitos que adquiri ao longo da vida, devo dizer que esse tem sido o mais útil, o mais significativo. Correr sem intervalo por mais de duas décadas também me tornou mais forte, tanto física como emocionalmente. A questão é que não sou muito dado a esportes de equipe. É simplesmente assim que eu sou. Sempre que jogo futebol ou beisebol — na verdade, desde que me tornei adulto isso ficou cada vez mais raro —, não me sinto à vontade. Talvez seja porque não tenho irmãos, mas jamais fui capaz de participar do tipo de jogo que envolve outros jogadores. Também não sou muito bom em esportes de um contra um, como tênis. Gosto de squash, mas em geral, quando se trata de um jogo contra alguma outra pessoa, o aspecto competitivo me deixa desconfortável. E quanto às artes marciais, também, não contem comigo. Não me levem a mal — não sou totalmente anticompetitivo. É apenas que, por algum motivo, nunca me importei muito se derroto os outros ou se perco deles. Esse sentimento permaneceu um tanto inalterado depois que cresci. Não faz diferença o campo de atuação — derrotar alguém simplesmente não é meu barato. Interesso-me muito mais por atingir os objetivos que fixei para mim mesmo, de modo que, nesse sentido, corridas de longa distância caem como uma luva para uma disposição de espírito como a minha. Corredores de maratona compreenderão o que quero dizer. Não nos importamos de fato se derrotamos este ou aquele corredor particular. Corredores de primeiro nível, é claro, visam superar seus rivais mais próximos, mas para o corredor mediano, do dia a dia, a rivalidade individual não é uma questão de suma importância. Tenho certeza de que existem corredores comuns cujo desejo de derrotar um rival particular os incita a treinar com mais afinco. Mas o que acontece se seu rival, seja por que motivo for, abandona a competição? Sua motivação pela corrida desaparece ou pelo menos diminui, e fica difícil para eles continuar correndo por muito mais tempo. Os corredores mais comuns são motivados por um objetivo individual, mais do que qualquer outra coisa: a saber, um tempo que desejam bater. Assim que consegue bater esse tempo, um corredor vai sentir ter atingido o objetivo a que se propôs, e se não conseguir, sentirá que não o fez. Mesmo que não consiga fazer o tempo que esperava, contanto que tenha o sentimento de satisfação de ter feito seu melhor — e, possivelmente, ter feito alguma descoberta significativa sobre si mesmo no processo —, então isso é uma realização em si, um sentimento positivo que ele pode levar consigo para a corrida seguinte. O mesmo pode ser dito a respeito de minha profissão. Na ocupação de romancista, até onde sei, não existe isso de vencer ou perder. Talvez o número de exemplares vendidos, prêmios recebidos e elogios da crítica sirvam como parâmetros externos para a realização literária, mas nenhum deles importa de fato. O crucial é que o que você escreve atinja os padrões que estabeleceu para si mesmo. O fracasso em atingir essa marca não é algo cuja explicação você possa fornecer facilmente. Quando se trata das outras pessoas, sempre é possível aparecer com uma justificativa razoável, mas não dá para tapear a si mesmo. Nesse sentido, escrever romances e correr maratonas inteiras são atividades muito semelhantes. Basicamente, o escritor tem uma motivação silenciosa, interior, e não busca validação em coisas que sejam visíveis externamente.

[2] Depois que fechei o bar e iniciei minha vida de romancista, a primeira coisa que nós — e por nós quero dizer minha esposa e eu — fizemos foi mudar completamente nosso estilo de vida. Decidimos que era melhor ir para a cama pouco depois de escurecer e acordar com o raiar do dia. Na nossa concepção, isso era natural, o tipo de vida respeitável que as pessoas viviam. Havíamos fechado o clube, de modo que decidimos também que a partir dali só nos encontraríamos com as pessoas que queríamos ver e, na medida do possível, passaríamos sem os demais. Sentíamos que, por algum tempo, pelo menos, podíamos nos permitir essa modesta indulgência. Foi uma mudança de rumo crucial — do tipo de vida aberta que durara sete anos para uma vida mais fechada. Creio que levar esse tipo de existência aberta por um período foi uma boa coisa. Aprendi um monte de lições importantes durante esse tempo. Foi minha verdadeira escola. Mas não dá para manter esse estilo de vida para sempre. Assim como na escola, você entra, aprende alguma coisa e então chega a hora de sair.

[3] Costumo pensar no modo como, exceto quando é jovem, você precisa realmente estabelecer prioridades na vida, imaginando em que ordem deve dividir seu tempo e sua energia. Se não consegue estabelecer esse tipo de sistema em uma certa idade, vai perder o foco e sua vida fica em desequilíbrio. Estabeleci como prioridade número um levar o tipo de vida que permite que eu me concentre na escrita, sem ter de socializar com todas as pessoas que estão em torno de mim. Eu sentia que o relacionamento indispensável que devia construir em minha vida não era com uma pessoa específica, mas com um número inespecífico de leitores. Na medida em que pudesse estabelecer uma vida diária de modo que cada obra fosse um aperfeiçoamento em relação à anterior, então muitos de meus leitores receberiam de bom grado fosse lá que vida eu escolhera para mim mesmo. Acaso não será esse meu dever como romancista, e minha prioridade máxima? Minha opinião não mudou com o passar dos anos. Não posso ver o rosto de meus leitores, então em certo sentido esse relacionamento humano é de um tipo conceitual, mas tenho persistido em considerar esse relacionamento conceitual, invisível, como a coisa mais importante em minha vida. Em outras palavras, é impossível agradar todo mundo.

[4] Em todo caso, foi assim que comecei a correr. Trinta e três anos — essa era minha idade na época. Ainda jovem o bastante, embora não mais um homem jovem. A idade com que Jesus Cristo morreu. A idade com que Scott Fitzgerald começou a decair. Essa idade talvez seja um tipo de encruzilhada na vida. Foi nessa idade que comecei minha vida de corredor, e foi meu tardio, embora verdadeiro, ponto de partida como romancista.

[5] Em toda entrevista me perguntam qual a qualidade mais importante que um romancista deve ter. Isso é bem óbvio: talento. Não interessa quanto entusiasmo e empenho você põe em escrever, se for totalmente destituído de talento literário, pode esquecer a ocupação de romancista. Isso é mais um pré-requisito que uma qualidade necessária. Sem combustível, nem o melhor carro do mundo anda.

[6] Se me perguntarem qual a segunda qualidade mais importante para um romancista, essa também é fácil: concentração — a habilidade de focar todos os seus limitados talentos no que for mais crucial no momento. Sem isso não se pode realizar nada de valor, ao passo que, se você for capaz de se concentrar eficientemente, conseguirá compensar um talento errático ou até a falta de talento. Eu geralmente paro para escrever de três a quatro horas todas as manhãs. Sento em minha mesa e me concentro totalmente no que estou escrevendo. Não olho para mais nada, não penso em mais nada. Mesmo um romancista muito talentoso e com a cabeça fervilhando de novas ideias provavelmente não consegue escrever uma linha se, por exemplo, estiver sofrendo com uma cárie. A dor bloqueia a concentração. Isso é o que quero dizer quando afirmo que sem concentração você não realiza coisa alguma. Depois de concentração, a coisa mais importante para um romancista é, sem sombra de dúvida, perseverança. Se você se concentra em escrever por três ou quatro horas por dia e se sente cansado após uma semana fazendo isso, não será capaz de escrever um livro longo. O que um escritor de ficção necessita — pelo menos aquele que sonha em escrever um romance — é a energia para se concentrar todo dia durante meio ano, ou um ano, dois anos. Pode-se comparar isso com respirar. Se a concentração é o processo de simplesmente prender o ar, perseverança é a arte de lentamente, calmamente, respiirar, ao mesmo tempo em que você armazena ar em seus pulmões. A menos que possa encontrar um equilíbrio entre as duas coisas, será difícil escrever romances profissionalmente por um longo período. Continuando a respirar enquanto segura o fôlego.

[7] Certa vez, quando tive oportunidade de conversar com um representante de vendas da Mizuno, ele admitiu: “Nossos tênis são meio comuns, eles não chamam a atenção. A gente prima pela qualidade, mas eles não parecem tão chamativos.” Entendo o que ele quis dizer. Eles não apelam para a publicidade, não tentam criar um estilo, não se valem de slogans sonoros. Assim, para o consumidor comum, são pouco atraentes. (O Subaru do mundo dos calçados, em outras palavras.)

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Sobre carolinayji

Desde que me conheço por gente, há algumas décadas, sou eu.
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