Middlesex
Autor: Jeffrey Eunides
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2014
Edição: 1
Páginas: 576
Original: Middlesex
Dedicatória:
Para Yama, que é feita de genes totalmente diferentes
Este livro estava na minha lista de leituras para 2015 por três motivos:
- Ter ganho o Pulitzer em 2003;
- Falar um pouco sobre Mitologia Grega;
- Apresentar o transtorno (psicológico) da identidade de gênero.
Ouso falar que Middlesex é até agora, o melhor livro que li neste ano e olha que ainda estamos em Outubro. A expectativa era grande acerca dessa história e em nenhum momento ela diminuiu a grandiosidade do livro, que, literalmente é realmente enorme: mais de 500 páginas contando a história de Calliope Stephanides e sua família (cujos nomes achei bem originais: Desdêmona, Esquerdinha, Um Sete Um).
A narrativa é feita de forma não linear, com a apresentação de 3 livros sobre a saga familiar dos Stephanides, do início dos tempos na Grécia até virarem imigrantes gregos que buscam uma vida nova nos Estados Unidos (em Detroit, para ser mais específica) por causa da guerra da Grécia com a Turquia. Relações incestuosas e mitologia misturam-se em uma ficção de encher os olhos e perturbar as mentes mais conservadoras. Elementos históricos como a queima de Esmirna fundem-se a um agradável cenário real com doses fictícias de terror.
Cal é hermafrodita. Diagnósticos errôneos e omissos do velho médico da família permitiram a falha na percepção do hermafroditismo. Ele foi criado como menina até a chegada de sua adolescência, que por si só, já é uma fase de afirmação para todos bastante confusa. Imaginar como funciona a mente de uma pessoa que tem os dois sexos é realmente uma tarefa desafiadora. Alguns problemas que fizeram sua infância diferente como a ausência da menstruação e o não desenvolvimento dos seios, mesmo na adolescência poderiam ter apontado a questão da má formação genética.
A história desta incrível viagem da herança genética dos Stephanides é contada de forma lenta e bastante descritiva. Mesmo assim não achei o ritmo monótono tampouco cansativo. Tudo é muito bem embasado, desde a criação de bichos da seda, os tradicionais costumes gregos, a crise norte americana e a imigração grega nos Estados Unidos. Outros temas presentes no livro são o racismo contra os negros e a homossexualidade.
O paralelismo da narrativa de Cal é parte do charme do livro. Em um dado momento, já em sua vida adulta na Europa, Cal se apaixona por uma descendente de japoneses, Julie. É engraçado e sonoramente familiar esta frase que ele fala: “Julie Kikuchi tem trinta e seis anos. Parece que tem vinte e seis.” Em outro, está a contar da tradição grega de adivinhar o sexo do bebê a partir de uma colher.
Jeffrey Eugenides também é famoso por ter escrito o livro “As Virgens Suicidas”, que virou filme sob a competente direção de Sofia Coppola. Com Middlesex ele ganhou, em 2003, o prêmio Pulitzer.
Destaques:
[1] No entanto, encarando aquele rosto vazio, o dr. Philobosian perguntou: “Você está doente?”. “Faz três dias que não como”, respondeu o jovem. O doutor soltou um suspiro. “Venha comigo.” Guiou o refugiado por ruas secundárias até seu consultório. Conduziu-o para dentro, foi buscar gaze, antisséptico e esparadrapo num armário e examinou-lhe a mão. O problema era no polegar, a unha arrancada. “Como foi que isso aconteceu?” “Primeiro, os gregos invadiram”, disse o refugiado. “Aí os turcos revidaram. Minha mão ficou no fogo cruzado.” O dr. Philobosian não disse nada enquanto limpava o ferimento. “Vou ter que pagar com cheque, doutor”, falou o rapaz. “Espero que o senhor não se incomode. Não estou com muito dinheiro aqui.” O dr. Philobosian enfiou a mão no bolso. “Tenho algum. Vamos. Pode pegar.” O refugiado hesitou só por um momento. “Obrigado, doutor. Devolvo pro senhor assim que chegar aos Estados Unidos. Me dê seu endereço, por favor.” “Tome cuidado com o que for beber”, disse o médico, ignorando o que o outro lhe pedia. “Ferva a água, se possível. Logo devem chegar alguns navios, se Deus quiser.” O rapaz assentiu. “O senhor é armênio, doutor?” “Sim.” “E não vai fugir?” “Esmirna é minha casa.” “Boa sorte, então. E Deus o abençoe.” “Você também.” E, com isso, conduziu o refugiado à porta de saída. Observou-o se afastar.
[2] De acordo com uma antiga lenda chinesa, certo dia do ano 2640 a.C., a princesa Si Ling-chi estava sentada sob uma amoreira quando um casulo de bicho-da-seda caiu dentro de sua xícara de chá. Quando tentava tirá-lo dali, ela reparou que o casulo começava a se desfazer no líquido quente. Então disse a sua criada que pegasse a ponta do fio e saísse caminhando. A criada deixou os aposentos da princesa, passou pelo pátio e pelos portões do palácio, entrou pela Cidade Proibida e pelo campo, e quando estava a uns oitocentos metros de distância é que o casulo terminou de se desmanchar. (No Ocidente, essa lenda seria lentamente modificada ao longo de três milênios, até virar a história de um físico com sua maçã. De qualquer modo, o significado é o mesmo: grandes descobertas, seja da seda ou da gravidade, são sempre acasos. Acontecem a pessoas que ficam à toa debaixo de árvores.)
[3] Ficamos em silêncio, olhando um para o outro, e sem pensar me inclinei à frente e beijei Julie de leve nos lábios. No fim do beijo, ela arregalou os olhos. “Pensei que você era gay quando a gente se conheceu.” “Deve ter sido o terno.” “Meu radar pra gays falhou completamente.” Julie balançava a cabeça. “Sempre fico desconfiada de que estou servindo de última parada.” “De última o quê?” “Nunca ouviu falar disso? Garotas orientais são a última parada pra caras que ainda não saíram do armário. Eles procuram uma asiática por causa do corpo, que é mais parecido com o de um garoto.” “Seu corpo não parece o de um garoto”, falei. O que constrangeu Julie. Ela desviou o olhar. “Foram muitos os gays trancados no armário que chegaram em você até hoje?”, perguntei. “Duas vezes na faculdade, outras três na pós”, respondeu Julie. Não havia outra resposta possível senão beijá-la outra vez.
[4] O sr. da Silva tinha nascido no Brasil. Era difícil notar. Não fazia o tipo carnavalesco, exatamente. Os detalhes latinos de sua infância (a rede, a banheira no quintal) acabaram apagados pela formação americana e por sua devoção ao romance europeu.