Caderno de um Ausente
Autor: João Anzanello Carrascoza
Editora: Cosac Naify
Ano: 2014
Edição: 1
Páginas: 128
Dedicatória: Para Juliana.
Que livro delicado. Que vocabulário, que construção afetuosa. Uma preciosidade epistolar. Sem dúvida entrará para a lista das cinco melhores leituras de 2015.
Minha terceira leitura do ano foi uma grata surpresa. Conhecer Carrascoza pode ter sido a melhor descoberta de 2015. Seu segundo romance nos apresenta João, um professor de mais de 50 anos que prepara um grande caderno para sua filha que vai nascer, Bia, com uma singular delicadeza contida, por exemplo em: “Acabas de nascer e eu tenho de te explicar, como se já pudesses entender, e, da mesma forma, estou dizendo a mim, que não vamos passar muito tempo juntos” .
A narrativa em tom epistolar combina a voz memoriosa com o receio da não proximidade entre pai e filha, uma vez que a diferença de idade entre ambos é de meio século. João faz várias sugestões de ensinamentos e mostra-se preocupado com a capacidade de aprendizado sobre a vida da filha, como descrito em “não há, Bia, é bom que aprendas cedo, não há outra maneira de avançar senão experimentar, seja o que for, pena ou regozijo, ternura ou estupidez, o seu máximo limite, não se bebe o momento em pequenos goles, mas em longos tragos, afogando-se nele até sentir, em tuas entranhas, a vertigem de ser quem tu és inteiramente, de saberes desde já, sem que tenhamos te ensinado, que vão te reconhecer pelos traços que teu rosto ganhará nos próximos anos, pelo timbre de tua voz, talvez até pelo teu jeito de andar, vão te reconhecer, Bia, se conseguires alinhar o ritmo de tuas células ao giro dos astros, pelo tom do teu silêncio mais do que pela qualidade de tua fala”.
Em várias partes da prosa o lirismo das imagens reforça a imagem da mãe, que por complicações da gravidez e do parto se enfraqueceu. A inquietação de João sobre certas deficiências como a miopia se mostram em “eu não ia falar em pétalas se o momento exigisse espinhos, não, Bia, eu não ia, jamais, te emprestar, se me fosse dada a prerrogativa do não, a minha miopia, pra que não visses no grão o grandioso”, por exemplo.
Em dado momento, João descreve a árvore genealógica da família para Bia, como vemos em “Olha só, esta é a tua tia Marisa, minha irmã, veja o laço enorme de fita azul nos cabelos dela, era moda naquele tempo, era a festa de quinze anos dela, à direita o meu pai, à esquerda a minha mãe, tua avó Luíza, ela iria te querer muito, Bia, iria te mimar, como o fez nos poucos anos que conviveu com o teu irmão, Mateus, a tua avó Luíza amava crianças, se o teu avô não erguesse com as palavras muralhas entre ela e nós, seus filhos, ela teria nos asfixiado com seus afagos, talvez porque tenha sido tão difícil pra ela trazer a mim e a tua tia à vida, só dois filhos, enquanto, à época, os casais tinham sete, oito, nove, se eram muitas as bocas a nutrir, também era o dobro de braços pra ajudar no eito, o dobro de pernas pra perseguir a sorte, talvez por ter gerado tão pouco, a tua avó Luíza se exagerava em nós, o que pra outras mães havia sido fonte borbulhante pra ela foram gotas silenciosas, o que pra outras, seiva espessa, pra ela, fluido frágil, o que às outras chegara farto, a ela faltara, a tua avó era do tato, gostava de tocar, como se o corpo do outro lhe desse a segurança de que estava viva, de que o amor seguia seu andamento, como se a pele da gente, e mesmo dos objetos que ela apanhava, fosse o ancoradouro de que precisava pra se sentir inteira;”
Recomendo este livro se você procura lirismo e poesia. Permita-se emocionar.
Destaque:
[1] “só agora eu posso dizer o teu nome, com a força dos conjuros, o nome é que nos inicia no mundo dos signos, Bia, o nome é a sombra que vais carregar minuto a minuto, como os teus braços, e, junto ao nome, há uma estrela com a data de tua chegada, quando ela então começa a luzir, e terá de luzir sem parar, mesmo que não queiras, ou odeies o esplendor, luzir até que se apague será a tua sina, Bia, assim se passa com cada um de nós; sem que o saibamos de largada, o que nos eleva, embora também nos dilacere, são as grandes feridas. O nome, Bia, é a primeira delas, e continuará edema aberto pra sempre – mesmo quando, ao lado dessa estrela, colocarem uma cruz, confirmando o teu regresso à escuridão –, o nome, que lhe demos, jamais deixará de ser a cicatriz primeira de teu destino.”
Li recentemente essa obra. Achei muito boa, de uma sensibilidade incrível! Também recomendo.
Alexandre do blog http://doqueeuleio.blogspot.com